QUEM TEM BOCA VAI A FOFOCA
SOBRE OS DIVERSOS PAPÉIS DA FOFOCA EM DIVERSOS MOMENTOS HISTÓRICOS
É difícil escapar da fofoca no convívio social, gostando dela ou não. Segundo a etnolinguista Yeda Pessoa de Castro, a palavra fofoca vem provavelmente do grupo linguístico banto, que abriga cerca de quinhentas línguas africanas espalhadas entre a Angola e o Congo. Ela se originaria do quimbundo fuka, significando revolver ou remexer, e também é utilizada em Angola e Moçambique com o mesmo sentido brasileiro. Apesar de ser o termo mais utilizado para designar esse tipo de conversa, seu primeiro registro oficial tem apenas 47 anos, segundo Aurélio Buarque de Holanda.
Esse registro oficial não quer dizer que a fofoca é relativamente recente. Você possivelmente deve conhecer alguém que fofoca há mais de 47 anos, seja alguém da sua família, do seu trabalho, da sua vizinhança, do seu círculo de amigos. Ou até mesmo essa pessoa seja você. Costumamos pensar bastante sobre quem fofoca e quem é alvo de fofocas, mas raramente refletimos sobre a fofoca e como ela faz parte das sociedades humanas ao longo dos séculos.
A fofoca pode agir em certas situações de forma a criar conhecimento impossível de outras formas.
Há quem diga que a fofoca foi fundamental para o desenvolvimento da humanidade. Não é brincadeira. No livro Grooming, Gossip, and the Evolution of Language, o antropólogo Robin Dunbar defende que a nossa linguagem, fundamental para o desenvolvimento humano, evoluiu para suprir nossa necessidade de fofocar — embora não explique bem como a linguagem se desenvolveu de fato.
Dunbar fala sobre o “grooming”, o ato comum entre primatas de escovar o pelo um do outro como forma de criar laços sociais. Ele é um momento de vulnerabilidade e conexão em que um primata se abre para o outro ao permitir o toque, e sabe como ele está naquele determinado momento. Mas esse processo leva horas e só pode acontecer entre duplas ou grupos pequenos. Isso não é problema para um bando pequeno de primatas, mas não é suficiente para agrupamentos maiores, muito menos para vilas e cidades inteiras. A fofoca teria assumido o lugar do “grooming” porque, além de manter ligações em grupos maiores, ajudaria na circulação de informação entre as pessoas.
Mesmo se ignorarmos a teoria de Dunbar, não podemos negar que a fofoca pode ser uma fonte de conhecimento. É o que estuda a dra. Karen Adkins, professora da Regis University nos EUA, autora do livro Gossip, Epistemology and Power (Fofoca, Epistemologia e Poder, em tradução livre). Especialista em epistemologia, disciplina da filosofia que estuda o conhecimento, a estadunidense nem sempre é levada a sério em relação a sua pesquisa. “A fofoca carrega uma reputação terrível por tanto tempo como o oposto da verdade, o oposto de bondade, que é como se você estivesse do lado do diabo”, relata ela.
Obviamente, a fofoca não é igual ao método científico. A pesquisa de Keith Devis no livro Human Behavior at Work (Comportamento Humano no Trabalho, em tradução literal) mostra 80 a 90% de precisão na fofoca de escritório: é um número alto, mas os erros podem ser desastrosos. No entanto, há situações em que suas características podem ser úteis. Para Adkins, a fofoca pode agir em certas situações de forma a criar conhecimento impossível de outras formas. “Estamos perto de algo e estamos investigando porque é um espaço mais aberto para a conversação. Podemos ser experimentais porque é um espaço íntimo, confiamos uns nos outros e acreditamos. Nós podemos reunir fatos que não reuniríamos se estivéssemos escrevendo um artigo revisado por pares”, diz a filósofa.
Um lugar onde pode-se encontrar este uso da fofoca é na história chinesa. A China é uma das civilizações mais antigas do mundo e sua historiografia tem uma tradição riquíssima. O livro que estabelece as bases para os historiadores chineses é Shiji (Registros do Historiador em português), escrito por volta de 100 a. C. durante a dinastia Han, sobre a história da China até então. Segundo David Schaberg, acadêmicos chineses anteriores contavam a história de forma anedótica e usavam o “boca-a-boca” como uma fonte incontestável pela força da tradição.
Isso muda na dinastia Han. No Shiji, buscou-se construir uma narrativa historiográfica e as fofocas e os fuxicos também eram consultados por fazerem parte da opinião pública. Era o papel do historiador ouvi-los e analisá-los, procurando erros e ponderando diferentes versões. Já no livro Hanshu (História do Han), o autor Ban Gu recorre a um suposto contato na corte imperial que lhe oferece segredos que estruturam sua narrativa da dinastia Han, de forma a tornar coerente uma sucessão de acontecimentos tão impressionantes que quase não parecem possíveis.
Além de conhecimento, a fofoca também pode ser um instrumento de resistência das classes marginalizadas. O cientista político James Scott a agrupa com outras formas menos convencionais, como o corpo mole e a sabotagem. Segundo ele, “Essas formas brechtianas de luta de classe têm certas características em comum: requerem pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento; sempre representam uma forma de auto-ajuda individual; evitam, geralmente, qualquer confrontação simbólica com a autoridade ou com as normas de uma elite”.
Numa sociedade em que o letramento era um privilégio, várias rebeliões se construíram a partir de fofocas e boatos.
A dra. Adkins corrobora as ideias de Scott, explicando que a fofoca pode ser a única alternativa para alguns grupos. “Se pessoas são marginalizadas e parte dessa marginalização está afastando-as do letramento, da educação”, afirma, “então o tipo de armas típicas de influência, acesso e compartilhamento de informação não está aberto a elas.” Além disso, por se espalhar de forma costumeiramente oral, é difícil descobrir de onde ela veio — péssimo para o jornalismo e para gente curiosa, entre outros, mas perfeito para rebeliões e revoluções.
Um dos lugares onde podemos ver esse poder da fofoca em ação é na Índia Colonial, estudada por Ranajit Guha em Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India (Aspectos Elementares da Insurgência Camponesa na Índia Colonial, traduzido literalmente). Numa sociedade em que o letramento era um privilégio, várias rebeliões camponesas se construíram a partir de fofocas e boatos. Enquanto os boatos assustavam os poderosos, a fofoca ajudava a unir os camponeses.
“É bem engraçado, na verdade, todos esses registros em que as autoridades coloniais estão tipo ‘COMO?’ E eles estão totalmente perplexos porque elas não veem os nativos indianos como pessoas de fato, sabe?”, comenta a dra. Adkins, “Elas os veem como seres pouco racionais, sem agência, e elas estão surpresas que eles conseguem se organizar sob repressão e a resistência deles à repressão.”
Porém, nem tudo são flores. O exemplo inglês é bastante claro nisso. A palavra inglesa para fofoca, gossip, aparece na Idade Média. Gossip, derivada de godsibb (padrinho ou madrinha), nomeou acompanhantes de gestantes no parto a princípio. Então, essa palavra evoluiu para designar amigas mulheres a conversar sobre assuntos variados, sem conotações negativas, e o próprio ato delas de conversar. As gossips extravasavam suas frustrações e se expressavam livremente a partir de suas conversas, fossem elas seus maridos, suas vidas, entre outras.
De acordo com o livro Calibã e a Bruxa de Silvia Federici, é a partir do século dezesseis que gossip se aproxima do conceito de idle talk (conversa fiada) e se torna um comportamento repreensível, aceitável apenas quando serve para condenar atitudes não aceitas pela sociedade. A fofoca era um dos indicadores de bruxaria e as gossips poderiam ser punidas pela Inquisição, como pela máscara da infâmia, uma máscara de ferro que restringia os movimentos da face. Mas há uma ironia aqui, ressalta a dra. Adkins: “Todos esses clérigos descobriam a bruxaria a partir da mulher fofocar ou não, mas eles estavam descobrindo a bruxaria a partir da própria fofoca deles”.
É aqui que entra o que a dra. Adkins denomina fofoca invisível (invisible gossip, no original). É o tipo de conversa que se enquadra em todos os requisitos da fofoca, mas não é chamada como tal: é contexto, networking, especulação. É o jantar entre executivos, a reunião secreta de políticos. A fofoca invisível é “invariavelmente utilizada por pessoas que já possuem influência para que não se prejudiquem. Elas podem se comportar mal sem consequências.”, diz ela, “Então quando pessoas marginalizadas usam uma das poucas ferramentas a sua disposição, elas são atacadas epistemologicamente e eticamente. ‘Você está só fofocando, portanto não precisamos levar a sério o que você diz.’”
A fofoca perpassa gerações e culturas, anos e classes sociais. No entanto, passamos por tanto tempo apenas enfatizando seus aspectos negativos que nos esquecemos de que há mais do que apenas conversa fiada na fofoca. A fofoca pode ser divertida e revigorante, problemática e cruel, mas o que ela não pode ser é subestimada.
Publicada anteriormente em outubro de 2022 na Revista Você disse… FOFOCA?, com edição de Marília Félix.